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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

12 de set. de 2010

Entre o Rosto e a Máscara




“Que me
importa minha
sombra? Corra atrás
de mim, que eu lhe escapo!
Quando, porém, olhei para
o espelho, lancei um grito e
meu coração estremeceu;
pois não foi a mim que
vi, mas à carranca
zombeteira de
um demônio”


Nietzsche,
Assim Falou Zaratustra


Fazer “parecer como se fosse”, eis a resposta que poderíamos dar ao enigma que uma máscara nos apresenta. Uma coisa já parece estar certa, as máscaras não são uma sobrevivência de épocas passadas que perdeu seu sentido profundo na sociedade racional-industrial-ocidental contemporânea. Não obstante, “parecer como se fosse”, talvez não seja mais também uma resposta tão convincente. Seria a máscara “apenas” um substituto? Se uma “linguagem do rosto” pode ser estendida para todo o corpo (quando o rosto matou as significações do corpo e as substituiu pelas suas próprias), porque não podemos imaginar uma “linguagem” da máscara envolvendo o rosto? Podemos considerar a máscara como um ser autônomo e provido de significações próprias? Ou a máscara seria um elemento que se compõe com o rosto? Se a distância, ou diferença, entre rosto e máscara não existem, então o que é a máscara? (imagem acima, máscara remanescente da arte primitiva do Himalaia, encontrada no Tibete nepalês (1). O rosto foi cavado no ponto em que a madeira gira tortuosamente formando um nó, o que dá a ela um caráter de expressividade fantástica; imagem abaixo, à direita, máscara Mbangu, início do século 20, povo Pende, República Democrática do Congo. A contorsão do rosto representa uma paralisia do nervo fascial, marcas de varíola aparecem na pálpebra esquerda - ver nota 2, p. 329)

O que nos garante
que nosso próprio rosto
não é uma máscara?


É a máscara que copia o rosto ou o contrário? O homem parece obcecado por cópias. Copiar aquela paisagem, aquela árvore, aquele ser sobrenatural, aquela expressão de horror ou felicidade na testa enrugada de alguém... Um autorretrato, ato final e maior da cópia das feições de um artista por ele mesmo? Para quê copiar o que já existe? A necessidade de copiar parece sobreviver até nas distorções em relação ao original. Copiar é tornar público o duplo do original? Qual é a fronteira entre cópia e duplo de alguém ou de algum objeto? Na literatura ocidental temos vários exemplos de duplos que incorporam e vivem as vontades reprimidas de seus “donos” – como as múltiplas personalidades em O Médico e o Monstro? As máscaras copiam ou duplicam? Copiar alguém é a mesma coisa que duplicar alguém? Copiar é “fingir que é alguém”, enquanto duplicar e “ser o outro de alguém”? Será que poderíamos dizer que a cópia esconde, enquanto o duplo revela?

A maioria de nós só
presta atenção no lado de
fora das máscaras
...

Todo Dr. Jeckill tem seu Mr. Hide. A temática do duplo atravessa a literatura e, principalmente o cinema de ficção científica. Frankenstein, a criatura, era o duplo do Dr. Frankenstein, o cientista que o criou. O Incrível Hulk, verde, musculoso e raivoso, surgia sempre que o cientista-homem comum que o carrega se sentia ultrajado. Todas as versões de obras envolvendo vampiros e lobisomens recolocam a questão. Todo Fausto tem seu Mefistófeles. Toda Fera tem sua Bela (King Kong, A Bela e a Fera). No reino das máscaras encontramos representações que procuram dar conta da duplicidade. Em algumas etnias indígenas existem (ou existiram) máscaras com dois rostos.

Nessas máscaras de Janus, os rostos podiam estar dispostos lado a lado ou um de costas para o outro. Janus, personagem da mitologia romana, é um exemplo do segundo caso. Os Gelede, etnia ligada aos Yorubá da África ocidental, utiliza (ou utilizava) máscaras com dois rostos lado a lado. John Nunley explica que elas têm a função de trazer fertilidade para as mulheres e assim agir como elemento que beneficia a sociedade. (imagem acima, cena do clássico A Bela e a Fera, na versão para cinema de Jean Cocteau, 1946; imagem abaixo, à direita, máscara de dois rostos, do início do século 20, povo Gelede/Yoruba, Nigéria)




Ao contrário

do que as pessoas
imaginam, toda máscara
possui dois lados, o de fora
e
o do forro. O mesmo
deve valer para

os rostos?







Entre os africanos, ter quatro olhos é sinal de que se é capaz de ver e negociar com bruxas e velhas. “Quatro olhos” também representam a capacidade de captar os reinos, visível e invisível, da existência. Dois rostos significam gêmeos, que significam boa sorte para as famílias que os têm. No caso desta máscara em particular, os rostos são apresentados no auge da vida, nem novo nem velho. Os dois rostos representam também a visão Yorubá do self: todas as pessoas maduras devem desenvolver uma cabeça interior que fica sempre sob controle, desta forma a cabeça exterior (ou personalidade social) está livre para lidar com as circunstâncias (2). Exemplo particularmente interessante deste tipo de máscara de dupla face vem da costa noroeste do Canadá. Chamada ironicamente de “máscara de transformação”, é parte das danças rituais do povo Kwakwaka’wakw. Os rostos não se apresentam lado a lado ou um de costas para o outro, mas estão um dentro do outro (3). Máscaras com mais de dois rostos existem também na Índia (imagem abaixo, à direita, máscara Ravana, fotografada por Abi Skipp). (imagem abaixo, à esquerda, máscara do teatro grego, encontrada na Líbia, norte da África. Terracota, séculos 3-2 antes de Cristo)

Na Grécia Antiga máscaras 
valiam como um rosto

Na Grécia antiga as máscaras tinham o mesmo valor de um rosto verdadeiro. To prosopon, “aquele diante de meus olhos”, era a palavra usada para designar tanto o rosto quanto a máscara. Em latim, persona é a palavra para máscara. Esta idéia contrasta com as noções modernas, como aquela da psicologia pós-freudiana, onde a máscara é uma metáfora do eu exterior ocultando a realidade interior. Talvez para confundir seus próprios rostos com o da Medusa, o rosto dela foi pintado em muitos lugares. Com seus olhos arregalados, seu cabelo composto por um ninho de serpentes, seu nariz bulboso, seus dentes arreganhados, seus caninos vampirescos e língua esticada para fora da boca, o rosto da Górgona Medusa é a síntese grega do pesadelo de terror: olhar em seus olhos nos condena a virar pedra. Depois que Perseu a matou, a cabeça da Medusa foi usada por Atenas no pescoço. Com seu olhar fixo, a imagem do rosto da Medusa seria reproduzida em jóias, brasões e escudos de batalha e armas, adorada nos templos e pintada nas cerâmicas (4).



É curioso que
mesmo sempre
tendo existido no
Ocidente
, a visão
de uma máscara
nunca deixa de
nos fascinar



As máscaras eram parte do teatro grego desde muito antes de Ésquilo e Aristófanes. A tradição grega atribui a invenção do teatro à Téspis. De acordo com a história, este ator arquetípico fez sua primeira atuação da tragédia disfarçando seu rosto com chumbo branco, antes de formalizar a maquiagem pela utilização de verdadeiras máscaras. As evidências sobre as máscaras nas tragédias de Ésquilo, Sófocles ou Eurípides são escassas, advindo em sua maioria de pinturas em vasos. Aparentemente as máscaras cobriam toda a cabeça, como um capacete. O tipo facial era centrado numa expressão vazia, ao contrário das máscaras de teatro helenísticas ou romanas. Estas máscaras representavam um tipo geral, formas idealizadas de jovem sem barba, cidadão barbado, rei, mulher ou deus, etc (5). Na verdade, a reprodução literal ou fidedigna do rosto só passou a fazer parte da preocupação do artesão grego a partir da era romana.




As máscaras são,
mesmo     quando
não   estão   sendo
utilizadas por nós
,
máscaras sociais





O dado relevante a ser considerado quanto à compreensão do papel das máscaras é que elas não tinham como função enganar. Entretanto, observa Jenkins, é irônico notar que apesar das máscaras haverem se tornado o símbolo do teatro no Ocidente, com raras exceções o drama mascarado é largamente evitado no palco europeu. Em decorrência, quando aparece, a máscara tem sempre a função de ocultar, disfarçar alguma coisa sinistra ou clandestina. Jenkins conclui afirmando que “nosso impulso natural quando confrontados com uma máscara é perguntar o que ela esconde. A chave para compreender a função da máscara no mundo antigo não é formular esta pergunta, mas [considerar a máscara] com o valor de um rosto” (6). (imagens acima e abaixo, à esquerda, máscaras de transformação mostradas nas duas posições apresentadas durante a dança rituail, povo Haida, Canadá; imagem abaixo, à direita, dançarino da etnia Elema, Papúa Nova Guiné, fotografia registrada em 1929. No topo da máscara, equibibra-se um chapéu em forma de tubarão. Máscara do ritual Hevehe, invocação dos animais totêmicos durante a construção de uma nova casa de reuniões - fonte: National Geographic (Brasil), maio, 2000)



Num certo sentido,
para viver na sociedade
ocidental contemporânea
temos que dominar a arte
de produzir máscaras sociais.
Exatamente como os animais
na natureza... Sempre fingindo
que não estão onde estão. Que
não estão nem aí. Mas sempre
procurando a melhor hora
de atacar. Mas nós somos
civilizados... Certo?




Lesley K. Ferris discordaria de Jenkins quanto ao drama mascarado ser evitado no Ocidente. Para provar seu ponto, chama atenção o trabalho de Susan Harris, que identifica mais de 225 peças escritas desde 1896 onde máscaras são utilizadas pelos atores. Entretanto, Ferris também é de opinião que o teatro ainda não conseguiu criar uma forma de atuação em torno de máscaras comparável à antiga tradição (7). De fato, existe também um tipo de máscara cuja função não é ritual. Trata-se do que chamamos de “capacete”, que muitos nem pensam em máscaras quando olham para um – já sabemos que as máscaras no teatro grego eram como capacetes. Sua função é de proteção e/ou aumento do desempenho do usuário, que pode ser um policial, um soldado, um ciclista, um motociclista, um skatista, um jogador de futebol americano, um esgrimista, um astronauta, um piloto de fórmula ou um piloto de avião de combate. Desta modalidade de máscaras também fazem parte os elmos das armaduras medievais. (última imagem do artigo, máscara de Hannya, teatro Nô japonês. É uada pelo personagem de um demônio vingativo que já foi uma bela mulher. Tudo nela lembra ferocidade, com excessão das sobrancelhas, pelo menos quando vista de frente - neste caso a peça está sendo visualizada de cima para baixo, enfatizando seu caráter maligno)

Ao contrário
da tatuagem
, que é definitiva, a maquiagem
e a pintura corporal
são uma espécie de
máscara lavável

Em inglês, nos explica Mack, o termo ‘máscara’ ou ‘mascarar’, tende a distinguir a máscara em contraposição a tudo que estivesse relacionado a ela. Ou seja, falamos separadamente da máscara e da roupa do mascarado. Na África central, existe um ritual chamado Makishi. Neste caso, roupa e máscara constituem uma só entidade: a máscara. Mack afirma que de qualquer forma o que é interessante nas máscaras, o elemento de transformação que elas implicam, surge de uma tensão entre o que o mascaramento revela e o que esconde. É essa tensão que o torna intrigante, sua capacidade em misturar o familiar e o estranho (8). Já se configura uma “zona cinza” em relação a este ponto entre o que a máscara esconde e o que revela. De acordo com Cesare Poppi...

“Na Europa, como em qualquer outra parte, máscaras são paradoxais em seu uso: como Mesnil e Napier observaram, elas ao mesmo tempo transformam e fixam identidades. Escondendo a identidade individual, elas simultaneamente a transformam em algo radicalmente diferente – na medida em que arrancar a máscara do rosto de alguém é um ato de execração. Todavia, ao mesmo tempo elas criam ‘tipos fixos’, dando forma definitiva para papéis simbólica e dramaticamente imprecisos. Neste sentido, máscaras simplificam humores e status individuais mutáveis provendo-lhes com identidades permanentes. Elas permitem a uma narrativa dramática estruturada, previsível (e, portanto, que pode ser repetida), desdobrar-se em eventos recorrentes. O papel que um mascarado assume ao escolher esta ou aquela fantasia, não é uma simples celebração de liberdade e criatividade, mas formaliza a ação: o comportamento do mascarado é antecipado, até mesmo prescrito. Conseqüentemente não podemos compreender máscaras sem considerar o contexto da ação do mascarado. Apenas quando uma atuação está em plena operação pode o efeito da combinação de transformação e fixidez ser apreciado” (9)

Pode-se
seguir todos os
movimentos dos
mascarados para
procurar compreender
o que uma máscara pode
significar para eles
. Mas
ainda não saberemos
porque mesmo uma
máscara sozinha
parece estar
viva!



1. PETIT, Marc. À Masque Découvert. Regards sur l'Art Primitif de l'Himalaya. Paris: Éditions Stock/Éditions Aldines, 1995. Pp. 177 e 267.
2. NUNLEY, John W.; MCCARTY, Cara. MASKS. Faces of Culture. New York: Harry Abrams Incorporated. 1999. Pp. 171-172 e 319.
3. Idem, p. 324.
4. JENKINS, Ian. Face Value: The mask in Greece and Rome. in MACK, John (ed.). MASKS. The art of Expression. London: The British Museum Press, 1996. Pp. 151, 156.
5. Idem, pp. 156-7.
6. Ibidem, p. 166.
7. FERRIS, Lesley K. The mask in western theater: transformation and doubling in NUNLEY, John; MACCARTY, Cara. Op. cit., pp. 242-246.
8. MACK, John, op. cit. Introdução, About Face, pp. 12-16.
9. POPPI, Cesare. The other within: Masks and masquerades in Europe in MACK, John. Op. Cit., p. 194. 


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